Relações de trabalho na era da gig economy
Uma de suas grandes contribuições foi conseguir traduzir pela metáfora da liquidez a dissolução das estruturas sólidas do passado ante a fluidez e a instabilidade das instituições
sociais do mundo contemporâneo, cuja transformação imediata não se pauta mais pelos ciclos naturais e metódicos da natureza, menos ainda pela durabilidade.
A fragilidade de vínculos intermediados pela tecnologia reflete-se nas relações de trabalho e recebe um termo para ser melhor definida: gig economy.
Ana Carolina Rodrigues e Olívia Pasqualeto são professoras da Fundação Getulio Vargas (FGV) e pesquisadoras do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (Cepi) da Faculdade de Direito da FGV em São Paulo. Entre 2020 e 2022, elas participaram do projeto “Futuro do trabalho e gig economy” desenvolvido pelo Cepi.
O período de estudos comporta um dos mais relevantes para o universo do trabalho no Brasil, quando a contratação de pessoas autônomas por plataformas online explodiu em meio à pandemia de covid-19 e as taxas de desemprego chegaram à média nacional de 15%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O indicador de desemprego, no entanto, castigou mais os trabalhadores com menos tempo de estudo e menor qualificação.
Parte da mão de obra ociosa foi absorvida pelas plataformas de serviço. Essa nova relação foi apelidada de “uberização”, mesmo transcendendo a Uber. A empresa, que liderou globalmente a mudança no uso do transporte privado e individual por meio de um aplicativo, se tornou sinônimo de inovação, mas também de precariedade na relação de trabalho.
Entretanto, a informalidade não é exclusividade do atual momento. As pesquisadoras Ana Carolina e Olívia lembram que já no século 20 foram observadas novas modalidades de contrato realizadas por meio da terceirização, por exemplo.
Contudo, pontuam as professoras, a chamada gig economy, caracterizada pelo uso de tecnologias digitais e pelo predomínio de contratos mais flexíveis, tem trazido novos desafios e suscitado importantes discussões sobre a natureza da relação de trabalho entre trabalhadores e plataformas, as condições de trabalho e a efetividade dos mecanismos de proteção social.
Primeiro, porque a escalabilidade do modelo é imensa. Segundo, porque os profissionais estão sob o controle direto tanto da plataforma empregadora quanto do cliente que os acompanha em tempo real, e sujeitos a avaliações diárias do seu desempenho conforme juízos bem pouco criteriosos.
Entre o prestador de serviço e o cliente, há um ganha-ganha inegável. Por isso, os serviços de entrega por delivery são um fenômeno mundial e ninguém mais abre mão dessa conveniência. Mas não se pode relegar o papel imprescindível do intermediário para o bom funcionamento desta operação, apesar de ele arcar sozinho com os riscos dessa empreitada - desde doenças em decorrência do estresse, acidentes de trabalho a roubo. Isso sem ter acesso aos ganhos reais do negócio e, em muitos dos casos, sem a menor compreensão do que significa ser “a própria empresa”.
Judicialização
Em contratos feitos entre pessoas, é possível comunicar as queixas e buscar formas de solução. A judicialização ocorre, em geral, quando a insatisfação e a sensação contínua de abuso não se resolvem. E quando o vínculo é com uma plataforma?
No modelo desenvolvido, o compromisso por demanda entre as partes pode ser interrompido a qualquer momento, sem prejuízo. Mas há muitas exceções e exigências que acabam empilhando processos por vínculo empregatício na Justiça do Trabalho.
A busca por reparação ganhou outra dimensão quando as empresas de aplicativo recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF), como conta o advogado Daniel Domingues Chiode, sócio do escritório Chiode Minicucci.
Para o advogado, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), datada da década de 1940, oferece direitos e proteções a um perfil de trabalhador que não é mais compatível com o século 21.
“No entendimento do Supremo, a CLT não está preparada para regular o trabalho por aplicativo”, argumenta Chiode. Segundo o advogado, as manifestações do STF sobre a não vinculação empregatícia entre o prestador de serviço e a plataforma se constituem “marcos regulatórios” para assuntos de grande sensibilidade como esse.
De janeiro a agosto de 2023, o STF acatou 63% dos pedidos encaminhados para anular o vínculo empregatício. Em números absolutos, o dado representa 204 do total de 324 apresentados à Corte no período analisado. A pesquisa foi realizada por Olívia Pasqualeto. Foram 167 ações envolvendo terceirização ou “pejotização” da atividade-fim, ou seja, 52% dos encaminhamentos.
De acordo com Chiode, há uma tendência em avaliar critérios objetivos e subjetivos da escolha do indivíduo em relação à modalidade de trabalho, como formação intelectual e nível acadêmico, a fim de que também não ocorra abuso de direitos em pedidos de proteção da CLT nos casos em que o prestador de serviço possui ampla consciência sobre as relações estabelecidas.
Soluções
No curto prazo, não há soluções prontas. O trabalho por aplicativo não se restringe mais aos entregadores ou condutores de veículos. Há professores, profissionais da beleza, da saúde, do direito, todos atuando em plataformas. As vezes, como proprietários; muitas vezes, como prestadores de serviço.
O primeiro passo, como sugerem Ana Carolina e Olívia, é reconhecer que existe uma relação assimétrica entre os trabalhadores e as plataformas. Buscar inspirações na solução de outros países e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que apresenta recomendações para estabelecer relações mais justas e equilibradas.
Por fim, as pesquisadoras reforçam a importância de ter como parâmetros práticas de diálogo social para a construção de uma regulamentação efetiva, que atenda a todas as partes.
Artigo originalmente publicado no dia 15 de fevereiro de 2024 na revista Mercado & Consumo.